04-05-2006
Opinião do Internista: A outra face da doença
Por Frederico Sanches
“Há circunstâncias na vida em que a dignidade humana pode exigir grandes sacrifícios, isto é, heroísmo. Ninguém tem autoridade moral para exigir do outro um comportamento heróico. Cada um de nós tem essa obrigação, não porque outros lho peçam ou censurem se o não fizer, mas porque, as próprias coisas lhos pedem; pede-o sobretudo a dignidade humana.
A história de todas as culturas está cheia de gestos exemplares deste tipo, fora do “normal estatístico”. Mas estas escolhas podem surgir na vida de todos os homens, em circunstâncias “normais”. Juan Luís Lorda
A leitura do livro “ Saudades do Danny”, oferta gentil da autora Grace Beatriz, obrigou-me a horas de introspecção e de reflexão sobre o verdadeiro significado da vida. Apesar de rotinado na abordagem das doenças oncológicas, confesso que, não raras vezes, invade-me uma sensação de vazio e de impotência e, descuidadamente, ainda deixo cair a máscara de tecnocrata, qual protecção divina que, nós médicos, tanto precisamos nos momentos mais difíceis. Na verdade, uma coisa é abordar a doença, e outra coisa, muito mais complexa, é abordar o doente “terminal”.
O livro da Grace trouxe-me à memória muitas interrogações e veio reforçar a minha convicção de que, apesar das constantes dificuldades, é necessário e urgente pensar-se numa estratégia que vise minorar o sofrimento dos doentes cabo-verdianos, tanto em Cabo Verde como em Portugal. Sem querer criticar quem quer que seja, a minha preocupação é única e exclusivamente trocar ideias com quem, como a Grace, se preocupa com o sofrimento dos outros e, de forma prática e desinteressada, se oferece para ajudar na procura de uma solução para este grave problema. Sou cabo-verdiano, médico de Oncologia em Almada, especialista em Medicina Interna, membro da OMEC (Organização Médica Cabo-verdiana) que já se disponibilizou, por diversas vezes, a colaborar com Cabo Verde e conheço a história do Danny através de uma Cabo-verdiana, “anónima”, que vive na Holanda. Não é feio?
A evacuação de doentes para Portugal não poderia ser uma estratégia comum entre a junta Médica cabo-verdiana e a OMEC que serviria de ponte, junto das autoridades portuguesas? (fiz esta proposta aos elementos da junta médica cabo-verdiana há mais de um ano). Quando é que o Ministério da Saúde de Cabo Verde pretende receber a OMEC e ouvir as suas propostas, nomeadamente, em relação ao envio de especialistas para realização periódica de consultas de especialidade em Cabo Verde? É preciso lembrar que o problema dos doentes começa em Cabo Verde, diagnóstico tardio, carência de medicamentos e burocracia portuguesa que atrasa a evacuação dos mesmos.
A história do Danny, Grace, infelizmente, é a de muitos cabo-verdianos em Portugal. É a do dr. Miguel que após uma evacuação tardia e meses de sofrimento em Lisboa, regressou para morrer perto da família e dos amigos. Morreu e levou com ele o sonho de, um dia, retribuir, em Cabo Verde, a amizade e a solidariedade que recebeu em Portugal. É também a história de um jovem de Santa Catarina que aos trinta e dois anos viu-se confrontado com o diagnóstico de Carcinoma Hepato-celular (tumor do fígado) e que morreu em Lisboa, sem se despedir dos filhos, seu último desejo. Diamantino, um jovem de trinta e poucos anos, andava a perder peso e com anemia. Após várias transfusões no HAN e perante a indecisão da junta médica, a família mobilizou os poucos recursos para que o jovem tentasse a cura no Senegal. Desiludido voltou para Cabo Verde e sem recursos para viajar para Europa, resignou-se, a morte parecia inevitável. Estava no consultório quando a minha irmã telefonou, os amigos contribuíram para a viagem, o jovem viajava no dia seguinte e precisaria de apoio em Portugal. Estava de Urgência Interna naquele fim-de-semana, portanto, recebi-o logo no Hospital Garcia de Orta. A anemia estava estampada nas suas mucosas (6 gramas de hemoglobina) e a palpação daquele abdómen saliente era sugestiva, neoplasia do cólon.
Diamantino teve sorte, chegou a tempo, não havia metástases à distância. Foi operado, fez quimioterapia adjuvante e hoje vive feliz, em companhia da família. Cabo Verde assumiu, a posteriori, os custos do tratamento e paga as viagens à Portugal para as consultas de follow-up (louvável).
Não nos esqueçamos dos insuficientes renais crónicos. Condenados ao tratamento de substituição da função renal (hemodiálise), perto de uma centena de cabo-verdianos vivem em Portugal, longe da família e dos amigos, alguns em péssimas condições. Além dos custos com os tratamentos não podemos esquecer que, muitas vezes, são mãos de obra qualificadas que o país perde. Vivi diariamente, durante cinco anos, o drama de homens que deixaram a mulher e os filhos em Cabo Verde, sem esperança de um dia voltar a vê-los. Sim, Grace, é muito triste ouvir as suas lamentações e sinto-me culpado quando perguntam, Sr. dr. para quando a diálise em Cabo Verde?
A solução ideal seria, sem dúvida, o país formar médicos especialistas em todas as áreas e construir hospitais modernos munidos da mais perfeita tecnologia. Sejamos realistas!
Mas, por outro lado, não podemos cruzar os braços e esperar pela misericórdia da China ou do Luxemburgo. Temos que provar que somos capazes, fazer projectos, mostrar que conhecemos a realidade do nosso país e assumir com determinação que a política de saúde em Cabo Verde terá que ser feita pelos cabo-verdianos. Longe de possuir a verdade suprema, nem é minha intenção ferir susceptibilidades, pretendo, simplesmente, dar voz à quem não consegue fazer-se ouvir e, defender a saúde em qualquer circunstância.
É bom que os intelectuais, quadros da diáspora, e não só, pessoas disponíveis, se reúnam e discutam temas importantes para o país, mas, paralelamente, nós Grace, gente anónima, no terreno, precisamos fazer algo em prol do país e da nossa gente. Parafraseando Madre Teresa de Calcutá, não podemos dar-nos ao luxo da complexidade, pois, enquanto eles idealizam, morrem pessoas no nosso “pequeno Calcutá”.
Não queria terminar esta nossa conversa, Grace, sem uma palavra aos jovens que morrem precocemente, ou ficam incapacitados, todos os dias, vítimas de doenças cardiovasculares, por falta de recursos humanos e materiais nos nossos hospitais. É tempo de conversarmos, cabo-verdianos de todo o mundo, sem complexos, cada um com a sua experiência, pensemos Cabo Verde.
*Assistente Hospitalar
Especialista em Medicina Interna
fems@netcabo.pt