18-07-2008

18 Jul, 14:10h
O drama de uma doente deslocada: dolorosas cenas de doentes em tratamento em Portugal

ADEUS ARLETE!!!

Arlete e o filho Odair, a espera de Grace no cais de Porto Novo. É a história dos últimos dias de uma jovem mulher de Porto Novo: quando a má doença bate à porta, nada têm os que sofrem no dia a dia. Nem apoio, nem alento: ficam sós, abandonadas longe, apartados dos seus, em dificuldades e chorando as dificuldades dos familiares que ficaram na sua ilha. Este é o relato de uma emigrante na Holanda que acompanhou os últimos dias de Arlete.

“Várias vezes pensei: o que vai na cabeça de uma jovem de 33 anos, mãe de 5 filhos, entre 17 e 3 anos, ali deitada numa cama do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, ligada a aparelhos respiratórios, tão longe da família amada e unida em Santo Antão – Porto Novo. Arlete sempre lutou contra o cancro e fê-lo com muita forca, até ao fim… Faleceu na madrugada desta quarta-feira, dia 16 de Julho de 2008, com apenas 33 anos de idade”. Isto nos escreve desde Lisboa quem a acompanhou no sofrimento, Grace Beatriz

“Às 6 horas da manhã, quando telefonei à familia da Arlete em Santo Antão, já sabiam do falecimento da Arlete e estavam inconsolàveis, gritando de desespero. A irmã Guigui, que cuida dos filhos disse-me: “Eu não acredito! Não acredito que a Arlete me tenha feito uma coisa destas. Ela me enganou!!!” Também pensei,nas palavras que a Arlete me disse três semanas atrás, ali sentada na cama, em casa do Tio em Porto Novo: – “NÂO QUERO MORRER! Quero viver para ver meus filhos crescendo… Pois, nunca fui feliz na minha vida!…”, continuou ela, com um ar muito triste. “Tive o meu primeiro filho aos 16 anos, tendo amado tanto o pai de Odair, mas ele deixou-me. Assim vivi 5 anos sozinha com o meu filho, dando-lhe todo o amor e carinho que uma mãe tem para dar. Eu, sempre à procura de um pouco de felicidade. Depois, encontrei outro homem, pai dos meus outros 4 filhos e pensei ter encontrado a minha felicidade. Também fui abandonada por esse homem e fiquei sozinha, com os meus filhos. Trabalhando no duro para poder sustentá-los, com a ajuda dos meus familiares. Nunca tive casa minha onde morasse, vivendo sempre empacotando as minhas malas, mudando constantemente de casa em casa. A minha filhinha, tinha apenas ano e meio quando fui evacuada para Portugal com diagnóstico de cancro uterino…”

onheci a Arlete há sete meses. Eu tinha ido a Portugal para organizar um jantar-convívio entre doentes evacuados… A Arlete lá estava, num quartinho na Pensão Camões. Fui visitá-la, entrei no quarto, ela fechou a porta e começou por mostrar-me as fotos dos 5 filhos, mas o que mais me impressionou, foi o amor quase palpável, pela maneira como ela falava do filho mais velho, Odair , de 17 anos….Dizendo-me: “ele é um bom rapazinho, só que ficou um pouco desorientado por causa da minha doença”.

Ela pediu-me para ajudar o filho arranjar uma barbearia para que assim ele pudesse ganhar dinheiro e sustentar as irmãs mais novas. Acho que foi de uma simpatia mútua o contacto entre nós as duas. Gostei da maneira como a Arlete encarava a sua doença, sempre positivando. Disse-me que a doença já estava controlada e até já estava com intenções de regressar a Cabo Verde.

Depois, regressei para a Holanda e ficámos sempre em contacto. Ela sabia que eu ia a Cabo Verde no mês de Junho e pediu-me para eu ir visitar os filhos no sul de Porto Novo, onde viviam com a mãe, tia e a irmã Guigui. No mês de Março, por ocasião da Páscoa, quis organizar algo para os doentes nas pensões. A Arlete sugeriu-me a boa ideia de eu enviar dinheiro e assim fariam um lanche em todos os andares das pensões… O que eu não sabia é que ela tinha recaído doente, com o cancro em metástases, invadindo desta vez os pulmões. Falava com ela e ela sempre guardando a esperança de poder vencer a doença.

No mês de Maio, ela disse-me que estava com vontade de ver os filhos e que um irmão dela, que vive em França, tinha organizado um jantar, junto com uns amigos de Porto Novo, e lá conseguiram arranjar dinheiro da passagem para ela ir visitar os filhos. Ela estava a espera da autorização médica, para que pudesse viajar.

Tínhamos combinado encontrarmo-nos em Porto Novo, para ambas irmos juntas à Câmara Municipal, falar com o presidente, sobre assuntos de uma casa e de subsídio para as crianças. Logo que teve autorização médica para poder viajar, telefonou-me para a Holanda toda ansiosa, que queria ir ver a família, matar saudades dos amigos e da terra. Cheguei a S. Vicente num domingo e fui a Porto Novo na quarta-feira. Tínhamos combinado, que ela mais os filhos iriam esperar-me no Cais de Porto Novo. Eles tinham vindo do Sul naquele dia e Arlete estava muito cansada.

Quando desci as escadas do barco, estava procurando ver a Arlete no meio daquela multidão, quando de repente ouvi o meu nome, e vi Arlete com Odair. Ainda bem que trazia óculos escuros para esconder minhas lágrimas ao ver a Arlete naquele estado… Só visto. As marcas que essa doença deixa nas pessoas, uma destruição total – como se uma pessoa viesse de um campo de batalha. Tive que lutar contra a minha emoção até à noite, quando eu, Arlete e toda a família fomos a um concerto… Estávamos em plena época de Senhor São João Baptista.

No entretanto conheci outra doente, a Bilinha, que se encontrava na mesma pensão em que estava a Arlete em Lisboa. Bilinha também era de Porto Novo e tinha 3 filhos. Ela estava muito mal quando a conheci. Pediu-me para a fotografar e disse-me para eu não deixar de ir visitar os filhos logo que fosse a Porto Novo… Infelizmente, uns meses depois da minha visita, ela faleceu no quartinho da Pensão.

Estava com a Arlete e a família na sala do concerto, quando a Arlete mostrou-me a filha da Bilinha. Uma miúda muito linda, acompanhada de algumas amigas e amigos. Fui ter com ela e falei do desejo da mãe e também da fotografia. Ela veio junto a Arlete que estava sentada, ajoelhou-se ao pé dela, chorando convulsivamente. Também eu, de pé, atrás da Arlete, não pude conter minhas lágrimas. Estávamos ali os três, ligados pela mesma tristeza. Tristeza da morte da mãe Bilinha, mas também tristeza de ver Arlete assim tão destruída.

Arlete partiu para Lisboa na sexta-feira e eu no sábado para a Holanda. Logo no domingo telefonei-lhe e disse-me que fora transportada directamente do aeroporto para o Hospital, mas que guardava esperanças de sair do Hospital brevemente. Disse-me várias vezes que não se arrependia de ter arriscado a vida, indo até Cabo Verde ver os filhos e familiares.

Três dias depois, quando telefonei, ela apanhou o telefone com uma voz muito estranha. Disse-me que a tinham ligado a um aparelho respiratório. Também disse estar muito preocupada com a família no Porto Novo, que “estavam todos angustiados”, “coitadinhos!!!” e que logo que eu tivesse tempo telefonasse para eles, por especial favor…E foi dizendo: “ DEUS TA COMPANHÔBE, Grace”. Foram as palavras que Arlete me repetiu várias vezes nesse dia. “Tu fostes um anjo que Deus colocou no meu caminho”.

Arlete, na sua maneira de falar, senti que estava a despedir-se de mim…


Última foto da Arlete, tirada há quase três semanas, no dia que ela embarcou para Lisboa

Então eu disse-lhe que era o meu dever, a minha obrigação. Não encontrei mais palavras naquele momento, para exprimir os meus sentimentos. A verdade é que há situações em que me sinto dominada pela impotência, numa espécie de vazio aliado a uma revolta contra o poder destruidor desta doença, cansativamente assassina. Sinto-me revoltada pelas condições em que os meus patrícios doentes vivem, sofrem e morrem num pais desconhecido, sem muitas vezes terem alguém, próximo, presente no momento fatídico…

Arlete vai ser dada à terra no sábado próximo, no cemitério de Benfica, em Portugal. Os senhores da Embaixada não deram autorização para a irmã de Arlete ir assistir o funeral, porque, como dizem, só pode ser dada ao marido (ela não tinha marido) ou a um filho (são todos menores).

Grace Beatriz

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